sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

MENINA DAS ÁRVORES - PARTE VI

Por Ciro M. Costa





Sabem, algumas pessoas devem achar o velório uma coisa curiosa. Enquanto uns sofrem mais, outros menos. Por outro lado, outros não sofrem nada. Pelo contrário, até se divertem um pouco.
Como o velório de meu pai não poderia fugir à regra, as coisas foram assim também. Embora, claro, eu não fosse um dos que se divertiam. Fiquei vendo as crianças brincarem do lado de fora, e lembrei-me de mim mesmo, quando pequeno. A bela idade da vida, quando o pai ainda é um herói. Se algum bandido invadir a casa no meio da noite, ou um monstro sair debaixo da cama, é só chamar que ele vem e resolve tudo. Se você está se afogando na piscina do clube, ele é o primeiro a pular para te tirar de lá. Se algum valentão está te incomodando, lá está ele para botar o pivete pra correr. Se você não tem força para fazer qualquer coisa, já está ele com seus fortes braços ao seu lado.
Embora a gente não tenha se dado muito bem nos últimos meses, não conseguia ficar com raiva dele, naquele momento. Aquele triste momento. Não fiquei aos prantos como minha mãe, mas podem ter certeza que lágrimas escorreram de meu rosto. Uma dor ruim, algo que apertava meu coração durante todo o momento. Magno estava lá, ao meu lado, tentando me animar um pouco, mas a gente sabe é inútil.
Enquanto isso, as crianças continuavam brincando. Acho que o grau de tristeza em um velório é equivalente ao grau que você conhecia e convivia com o falecido. Então por que Lucíola chorava falsamente? Conheço a tristeza muito bem, e aquilo mais parecia um choro de alegria. “Agora o armazém é meu!”, devia estar pensando. E Alberto ali, bem do lado dela. De vez em quando trazia um lanche para a megera, como um cão idiota. Nenhum dos dois sequer veio me dar os pêsames naquele dia. A que ponto chega a maldade e ambição de uma pessoa? Mas não era algo pra se preocupar no momento.
Preocupado estava mesmo com minha mãe. Estava praticamente sozinha agora. Seus pais já haviam falecido. Era filha única. Os primos moravam em cidades distantes. Eu era seu único filho, e ela sabia que um dia me casaria (se Deus quisesse, com Alice!) e iria embora de casa. Apesar de meu pai ser rude comigo, era muito bom pra ela. Era daqueles homens caseiros que ficavam em casa conversando e rindo com a esposa quando possível. Não se pode negar, era um ótimo esposo e companheiro. Nesse momento de tristeza, começo a perceber que foi bom pra mim também. Ser rude fazia parte do meu amadurecimento. Virar um homem de verdade, sem nunca precisar de ninguém, até mesmo para as pequenas coisas. Era isso que meu pai queria que eu fosse, e agradeço por isso.
Bem de longe, ouvi a música Sunday Bloody Sunday(*), do U2. Mais um motivo para essa banda ter marcado minha juventude. Toda vez que a ouço, me lembro daquele dia (que por acaso, era domingo) e sinto essa tristeza. Uma tristeza ruim demais. Queria que meu pai estivesse aqui. Queria ter aproveitado mais o tempo ao seu lado. Queria ter tido coragem de dizer coisas que o deixassem feliz, mesmo que parecesse piegas!
Queria... queria que Alice estivesse lá. Por um momento, pensei tê-la visto sentada em um dos túmulos, bem de longe. Quando chamei Magno para mostrá-la, para ver se não era apenas uma ilusão, ela havia sumido. Estaria eu já imaginando coisas?
Por que ela não estava lá? Já éramos conhecidos (não queria usar a palavra “amigos”) e era o mínimo que podia fazer por mim. Será que ela não ficara sabendo de nada? Acho impossível, uma vez que aquela cidade era pequena demais e as notícias voavam como águia.
Talvez seja por que Sheila estava lá. Sim, minha ex-namorada, estava presente, para demonstrar compaixão e talvez uma possível volta.
- Eu sinto muito por tudo, Joshua. – ela disse.
- Está tudo bem.
- Espero que não esteja se importando com minha presença. Mas é que, apesar de tudo, eu gostava muito de seu pai e ainda tenho muita amizade com sua mãe.
- Não há problema nenhum, Sheila. Pode ficar despreocupada.
- Vejo que está bastante triste, apesar do relacionamento que tinha com seu pai.
- Bem... ele era meu pai, apesar de tudo, não é?
- Sim, claro. Desculpe perguntar, mas por que está sozinho hoje?
- Sozinho? Como assim?
- Pensei que a tal moça das árvores estaria aqui com você hoje.
Claro que Sheila sabia. Cidade pequena.
- Ela se chama Alice. – respondi. – É apenas uma conhecida.
- Não foi o que eu ouvi fa...
- Com licença, Sheila. Preciso tomar um ar. Até mais.
Não adianta. Ex é ex em qualquer lugar e em qualquer situação. Será que algumas pessoas não sabem respeitar os sentimentos das outras, mesmo nos momentos mais difíceis? Será? Será que tive a impressão de ver Lucíola e Alberto sorrindo pra mim?
Precisava tomar uma água. Fui até a cozinha onde estava o café e os biscoitos. Engraçado, que antes de entrar lá, vi uma poça com um líquido vermelho saindo pela porta. Talvez alguém tivesse derramado algo. Um suco talvez!?
Mas não. Eu sabia que era algo mais grave. O cheiro e a sensação ruim não me deixaram imaginar algo diferente. E quando entrei, vi que a coisa era realmente séria.
Minha pobre mãe, havia se suicidado há poucos minutos lá dentro.
Sunday, Bloody Sunday...




(*) Domingo, sangrento domingo

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